25.9.06

Do Zeta ao Aleph





















Distraído, segurei a garrafa. Pesada, de vidro espesso. No rótulo monocromático, além da cor do metal argentino, destacava-se a letra Z, de Zuccardi, tradicional família estabelecida em Mendoza. Meu conhecimento em relação a seus vinhos não passava da letra Q. Q Malbec, Q Cabernet Sauvignon, Q Merlot e o Q Tempranilllo. Todos varietais, ao contrário deste Zeta, 54% Malbec, 46% Tempranillo. Curioso, confesso que queimei as duas primeiras etapas, visão e olfato, e fui direto ao paladar. 

Pobres daqueles que descrevem um vinho como uma "combinação de complexidade e elegância", e ainda se atrevem a escrever no contra-rótulo da garrafa tais palavras desprovidas de qualquer sentido. Melhor seria estampar ali uma imagem. Qualquer uma das muitas que vi naquela prova. 

Tateando no escuro daquele labirinto de sensações, tive a impressão de ver se aproximar o brilho luminoso do Aleph, o ponto de onde se avistam todos os outros. Ali, onde os quatro marcos cardeais fundem-se, vi a espada, o tigre, o sendero bifurcado e o espelho. Vi o cego na mesquita de Surakarta, vi o jaguar que espreitava no escuro da torre e o astrolábio que o persa Nadir Shait mandou atirar ao mar. 

Vi os raios de sol refletidos no mármore dos mil e duzentos pilares da mesquita de córdoba, vi o nascer da aurora e o despertar dos magos. Vi passar o ponto do qual não era mais possível retorno e pude perceber que, a partir dali, física e metafísica, literatura e filosofia, realidade e ficção, não passavam de uma única singularidade. 

Muito mais coisas vi e, quando já acreditava haver nada mais a ser visto, avistei o pequeno riacho e os dois velhos que conversavam à sua margem. Borges dizia a Homero que cada um de nós se define para sempre em um único instante de sua vida. Instante esse em que, cada qual, se encontra eternamente consigo mesmo. Homero respondia declamando as linhas finais do Soneto do Vinho, do próprio Borges: " Vinho, ensina-me a arte de ver minha própria história, como se esta já fora cinza na memória". Nessa hora, o velho brujo veio em minha direção e ofereceu-me o ombro como se, naquele lugar, fôra eu aquele que não enxergava. 

Como um fio de Ariadne, o velho me conduziu de volta por aquele labirinto. Poetas, como os cegos, enxergam no escuro. Poetas cegos, enxergavam duas vezes mais. Durante aquele trajeto, reconheci ao longe a cúpula dourada da cidade dos imortais, os minaretes nevados dos Andes, Buenos Aires e a Plaza de Mayo. 

Numa esquina da Calle Florida, Borges despediu-se e desapareceu no labirinto formado pelas estantes de uma daquelas muitas livrarias. Percorri sozinho o que restava do caminho de volta e, ao abrir os olhos, vi diante de mim uma taça ainda cheia. 

À mulher amada que me perguntava o que achei daquele vinho, respondi fantástico. E nada mais diria sobre o Zeta naquela noite.

9 comentários:

Paco Torras disse...

Espero que dessa vez vc tenha outra garrafa para continuar :-). Abs.

Paco Torras disse...
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Pingas no Copo disse...

Caramba. Isto assim não vale. Belos textos...

Um abração Rui

CrissMyAss disse...

Tem certeza de que aquilo era mesmo vinho?
Acho que a Mulher Amada andou colocando alguma coisa ali dentro...

Karen disse...

Esse vinho deve valer a pena...

Anônimo disse...

Não sei o que vale mais a pena: os textos ou os vinhos. :-)

Anônimo disse...

Não é que eu queira te matar de inveja, não, mas aqui em Paris está acontecendo a Foire du Vin. Os preços dos vinhos estão... estão... degustativos...

Anônimo disse...

No momento, ouvindo "Gotan Project", acompanhada d um "Château de Beaulieu", 2003. Não é excepcional, mas tudo bem.

Leandro Borges disse...

Estou com um Zeta na minha frente esperando o momento de toma-lo. Espero ver todas essas maravilhas vistas por você! Parabens pelo blog bem legal.

Abraço