10.10.06

Carpe diem, carpe vinum


Numa manhã sem grandes acontecimentos meu avô despediu-se de minha avó e faleceu pouco antes da hora do almoço. Não chegou a completar um século de existência, como todos esperávamos, mas chegou bem perto. Entre os seus pertences havia duas garrafas de vinho. 

Guardadas no fundo de um armário há pelo menos trinta anos, ambas foram a mim confiadas por minha avó. Assim, acabei herdando um porto Sandeman Partner's e esta magnífica garrafa de Concha y Toro Chilean Riesling cosecha 1974. Fazer o quê com um riesling de 1974 em 2006? Jogar no lixo, diriam enólogos e enófilos com o pragmatismo que lhes é peculiar e ainda acrescentariam, a título de erudição, que branco desta idade só um Montrachet e olhe lá. 

Abri a garrafa, evidentemente. A cor variava entre o alaranjado de um chá inglês passado do ponto e o ocre ferruginoso das terras de Siena. O aroma, alguma coisa indefinida e ligeiramente ácida sem no entanto aparentar vinagre. Provei. Naturalmente, não havia mais vinho naquela garrafa, tampouco sua sombra ou degeneração. Repousava ali um retrato em sépia de grandes realizações não acontecidas. Na boca, percebia-se facilmente o gosto meio doce meio amargo de tudo aquilo que poderia ter vindo a tona de maneira esplendorosa e, no entanto, não passou da condição de potência. 

Vinhos que morrem na garrafa são como paixões que não se concretizam porque uma das duas partes chegou atrasada ao que teria sido o encontro de suas vidas. Vinhos devem ser devidamente degustados no ponto ideal de sua curva, no estado de maturidade, depois da juventude e antes da decrepitude, diriam aqueles outros, os pragmáticos. 

Digam o que disserem. Em um único gole daquele que um dia foi um concha y toro, podia se experimentar, ainda que por breve instante, o vislumbre do quão espetacular teria sido beber daquele chilean riesling cosecha 1974. Não importa se na juventude, maturidade ou em que ponto de sua curva. Mas sim, numa daquelas manhãs sem grandes acontecimentos, ali por volta do meio-dia, na companhia do velho.

11 comentários:

Anônimo disse...

É, é por isso que a gente não deve adiar o que tem vontade de fazer. Quanto à feira do vinho, é um evento cercado de tradição, lógico, mas no fundo é comercial. O objetivo é vender bons vinhos conhecidos a preços atrativos e apresentar novos vinhos.

Pingas no Copo disse...

Lindo.
Rui

Karen disse...

Concordo!

NOG disse...

Os enófilos dizem que gostam do que lêem no "Pisando Uvas".

N. (da turma não pragmática)

Ane Brasil disse...

How beutifull, could a being be...
Tão lindo seria se houvesse sido.
Puxa, que história comovente, tocante e... instrutiva.
Sorte e saúde pra todos - inclusive pro seu avô, onde quer que esteja.

Anônimo disse...

Achei bem legal seu blog. Ele não tem sistema RSS? Isso é uma ferramenta muito boa para a gente compilar nossas informaçções.

Anônimo disse...

Adorei. E estou 100% de acordo quando vc escreve: "Vinhos que morrem na garrafa são como paixões... encontro de suas vidas".
Voltarei sempre por aqui!!
Vivianne

Anônimo disse...

"Vinhos que morrem na garrafa são como paixões que não se concretizam porque uma das duas partes chegou atrasada ao que teria sido o encontro de suas vidas."

ENORMÍSSIMA FRASE.

O teu post é de 2006, mas dei com ele hoje.

Sob a ameaça do mesmo risco que os vinhos correm se não forem abertos, nem FOI tarde, nem é cedo.

Aqui fica o meu comntário.

:)

Um abraço

Luis Eduardo Pomar disse...

Alô Dudu,
rapaz que texto lido, emocionante mesmo, parabéns!

Luis Eduardo Pomar disse...

Emocionante!

Ana Cecília Moura disse...

Olá, Eduardo. Por acaso cheguei ao seu blog e estou encantada com seus escritos. Gostaria de postar esse texto (devidamente creditado, por supuesto) no meu espaço, se não se importares, claro.
Aguardo sua aprovação, ok?
Grande abraço.